A Netflix espera fechar 2018 com 700 produções originais, incluindo séries, especiais e filmes. Acima de tudo, essa é uma estratégia de sobrevivência: a companhia sabe que fechar contratos de licenciamento ficará cada vez mais difícil por conta das elevações dos custos e da entrega exclusiva de determinadas obras a concorrentes. Para produtores independentes ou de pequeno porte, esse cenário tem sido interessante. A Netflix coloca em seu acervo produções originais de diversas partes do mundo e, para tanto, vem contratando muitas dessas empresas. A quantidade de conteúdo original na plataforma aumentou tanto que uma produção ou outra acabaria mesmo sendo indicada para festivais ou premiações. Okja é um exemplo notável. Assim que o logotipo da Netflix apareceu na reprodução do filme no Festival de Cannes do ano passado, a plateia se dividiu entre aplausos e vaias. Talvez parte das expressões de reprovação viesse de uma falha técnica que fez as cenas saírem cortadas no início, problema que foi corrigido cerca de 15 minutos depois. Mas, para muitos dos que estavam presentes, o problema técnico serviu de provocação. Era como se a Netflix estivesse dizendo “opa, foi mal, o não é um filme para rodar no cinema”. Esse é justamente o centro da polêmica: para muita gente, filmes não criados originalmente para exibição nas grandes telas das salas de cinema não devem fazer parte de um evento tão tradicional.
Ciente das argumentações, a Netflix até teria tentado exibir Okja em alguns cinemas da França para habilitar o filme ao Festival de Cannes, mas requisitos referentes ao cronograma de exibição não seriam cumpridos a tempo. De qualquer forma, muitos dos participantes do evento acreditam que um filme só pode entrar se tiver uma programação verdadeira para salas de cinema, não uma sequência de exibições improvisadas. Como uma plataforma de streaming, a Netflix não está disposta a levar as suas produções para o cinema. Talvez haja uma exceção ou outra, mas, como regra, uma decisão do tipo iria atacar o seu próprio modelo de negócio. Diante da recusa, Thierry Fremaux, diretor do Festival de Cannes, disse que nenhuma produção da Netflix poderá participar da edição deste ano. Na verdade, Netflix e outras plataformas de streaming até poderão exibir produções próprias no evento, mas nenhuma delas poderá concorrer à Palma de Ouro. “No ano passado, quando selecionamos esses dois filmes [Okja e Os Meyerowitz], achei que poderia convencer a Netflix a lançá-los nos cinemas. Eu fui presunçoso, eles se recusaram”, disse Fremaux ao Hollywood Reporter. Vários nomes fortes da indústria cinematográfica apoiam a decisão, direta ou indiretamente. Steven Spielberg, por exemplo, declarou em entrevista recente à ITV News que o conteúdo original da Netflix deveria ser considerado televisão e, portanto, algo inelegível para o Oscar. “Quando você se compromete com um formato televisivo, você é um filme de TV”, disse. Esse é um assunto que ainda tem espaço para muita discussão. De um lado há a íntima e tradicional ligação do Festival de Cannes com o cinema. Do outro está uma nova e irreversível forma de acesso a filmes que trouxe perspectivas para produtores com baixo orçamento que, de outra forma, teriam dificuldades para emplacar filmes. O sul-coreano Joon-Ho Bong, principal nome por trás de Okja, chegou a dizer que entende o motivo das vaias ao filme na edição 2017 do festival, mas que, se não fosse pela Netflix, a produção não teria saído, não da forma como foi concebida.